Teoria da carga cognitiva

Há mais ou menos uns 2 anos atrás, participei de um treinamento experimental sobre como aprender com o Alberto Souza lá na Caelum. Na época, essa era uma dor que a nossa equipe de instrutores e instrutoras das aulas presenciais vinha enfrentando e estávamos buscando alguma forma de ajudar as pessoas a desenvolverem essa habilidade de aprender profundamente algum assunto.

A primeira sessão do treinamento consistia em ouvir uma música em inglês que ninguém conhecia tentando anotar todas as palavras que pudéssemos enquanto a música tocava. A ideia era demonstrar que cada vez que ouvíamos novamente a música, mais fácil ficava de identificar as palavras que faltavam. Até aí não parecia ter nada muito relacionado com aprendizado mas nas próximas sessões, repetimos o procedimento só que dessa vez a tarefa era ler um artigo científico sobre um tema que não conhecíamos. A cada leitura anotávamos o que tínhamos entendido e depois tínhamos uma breve sessão de discussão pra ver o que cada pessoa tinha entendido.

Dessa vez senti que realmente tinha algo ali que a gente podia explorar mais. A sensação que tive ao sair de cada sessão era de ter realmente aprendido algo novo em pouquíssimo tempo. Pelo fato de que eu precisaria replicar esse treinamento com outras pessoas da equipe e também pelo fato de eu sempre querer entender como as coisas funcionam antes de tentar ensinar, iniciei um trabalho de pesquisa sobre ensino e aprendizado que continua até hoje.

Durante esses estudos, encontrei muita informação interessante mas teve uma que considero uma das teorias mais importantes pra quem trabalha com educação que é a teoria da carga cognitiva descrita por John Sweller em 1988. Apesar de estar mais ligada a educação, vou tentar mostrar nesse post que ela vai muito além disso e pode ser aplicada para guiar várias das decisões que precisamos tomar em outras áreas.

Conhecendo nossos limites

Antes de começar a falar diretamente sobre a teoria, gostaria que você fizesse um teste rápido. Olhe para as letras do próximo parágrafo por aproxidamente 8 segundos e depois, sem olhar novamente para as letras, anote o que você lembrar. Depois confira quantas letras você conseguiu acertar.

z   p   w   a   t

Espero que você tenha ido bem nesse primeiro teste! Agora, repita o mesmo procedimento com as letras abaixo:

 p   l   x   t   m   j   n   h   t   s   o

Imagino que esse segundo teste deve ter sido bem mais difícil, certo? Só para termos mais informação antes de prosseguir, gostaria que você repetisse novamente o procedimento com essa outra sequência:

t   e   s   t   e   d   e   m   e   m   o   r   i   a

Como você se saiu agora? Se tudo aconteceu como o esperado, provavelmente você conseguiu se lembrar das 14 letras da sequência acima. Também é igualmente provavelmente que você não tenha conseguido se lembrar da sequência anterior que tinha 12 letras. Por que isso aconteceu? O que torna uma sequência mais fácil ou mais difícil de lembrar?

A resposta para essas perguntas está em uma das estruturas da cognição humana que vimos no post sobre os papéis da memória no aprendizado. Naquele post, comentei que a memória de trabalho é a responsável por processar e manipular as informações que vem da memória de longo prazo ou dos nossos canais visual e auditivo. Vimos também que a memória de trabalho é bastante limitada mas não chegamos a entrar em mais detalhes sobre essas limitações então chegou o momento de falar um pouco mais sobre isso.

Lidando com as informações

Em 1956, George Miller publicou um artigo indicando que a nossa memória de trabalho tem a capacidade de lidar com aproximadamente 7 elementos de cada vez. Tomando essa informação como base, quando iniciamos o exercício de memorização acima, estávamos utilizando a memória de trabalho para armazenar temporariamente as informações. A situação que teríamos seria algo parecido com a imagem abaixo:

Nesse caso, podemos ver que como tínhamos apenas 5 letras, ficou fácil de encaixar na capacidade disponível da memória de trabalho. No entanto, quando avançamos para o cenário com 12 letras, a situação mudou e tínhamos algo assim:

Note que claramente não temos espaço suficiente para trabalhar com toda a informação de uma só vez. Talvez a gente consiga lembrar só do começo ou então só do final justamente porque pra trabalhar com a informação, precisa existir capacidade disponível na memória de trabalho. Quando isso não é possível, entramos em um cenário de sobrecarga e intuitivamente sentimos que a tarefa é complexa demais. Essa é uma situação bastante indesejável pois essa sobrecarga pode nos levar a cometer erros na execução da tarefa.

Seguindo em frente, na última etapa do teste tínhamos um outro cenário onde o objetivo era memorizar 14 letras e o esperado é que você tenha tido mais facilidade para se lembrar delas. Nesse caso específico, isso só foi possível porque a memória de trabalho e a de longo prazo trabalharam em conjunto.

Naquele cenário, as letras formavam três palavras já conhecidas: teste, de, memória. Nós já sabemos o significado de cada uma dessas palavras pois construímos esquemas para esses conceitos previamente. Sempre que isso acontece, só precisamos referenciar esses esquemas que já estão na memória de longo prazo e tudo que estiver relacionado a eles fica acessível pelo custo de um único elemento na memória de trabalho:

Apesar desse cenário envolver apenas letras e palavras, podemos aplicar tudo o que vimos até agora também para qualquer outro cenário de aprendizado. Tudo que for novidade vai exigir mais recursos da memória de trabalho e se a quantidade de coisas novas for muito grande, não vamos conseguir lidar com as informações de forma adequada para aprender ou fazer uso do que já sabemos.

Usando os recursos com eficiência

Quando queremos aprender, idealmente gostaríamos de usar os nossos limitados recursos justamente para facilitar o processo de aprendizado. No entanto, nem toda informação que vai para a memória de trabalho é relevante para esse processo. Por esse motivo, precisamos discriminar entre o que ajuda no aprendizado e o que atrapalha.

Na teoria da carga cognitiva, os recursos que usamos da memória de trabalho determinam a carga cognitiva da tarefa que estamos realizando. Assim como acabamos de ver, é importante distinguir entre a carga que ajuda no aprendizado e a que atrapalha e por isso, vamos ver agora alguns tipos de carga descritos na teoria.

O primeiro tipo é a carga intrínseca (intrinsic load) que se refere à complexidade da informação com a qual você precisa lidar. Podemos dizer que algo é mais complexo quanto mais informações novas existirem e quanto mais interrelacionadas elas forem.

Por exemplo, é muito mais simples entender o que é um submarino do que entender como ele funciona. Na primeira explicação, seria suficiente dizer que um submarino é uma embarcação que consegue operar debaixo da água. Perceba que só precisamos saber o que é uma embarcação pra entender essa definição. Já na segunda explicação, precisaríamos ter no mínimo um conhecimento profundo de física e química para entender como ele consegue controlar a própria profundidade e como ele consegue dar suporte à vida em seu interior.

A complexidade da informação não muda mas ela impõe diferentes cargas intrínsecas dependendo do conhecimento prévio de cada pessoa

Algo que decorre naturalmente da definição da carga intrínseca é que ela vai ser diferente para cada pessoa pois depende diretamente do conhecimento prévio. Pensando no exemplo acima, se eu fosse um profundo conhecedor de física e química, ficariam mais claros os mecanismos necessários para um submarino operar debaixo da água.

O segundo tipo de carga é a carga extrínseca ou irrelevante (extrinsic load). Como o próprio nome diz, essa é a aquela carga que não está ligada diretamente ao que você está tentando aprender nesse momento. Qualquer tipo de distração ou informação adicional que não seja necessária naquele momento vai contar como carga irrelevante.

O problema disso é que esse tipo de carga compete com a carga intrínseca e se juntas elas excederem a capacidade da memória de trabalho, o aprendizado fica prejudicado. Alguns exemplos de carga extrínseca são: barulho enquanto você estuda, notificações do seu celular te desviando a atenção, material didático desorganizado onde você precisa ficar buscando informações em páginas diferentes ou até mesmo o formato de instrução.

Com a adição da carga extrínseca, quem tinha menos recursos disponíveis na memória de trabalho acaba sendo mais prejudicado pois não consegue mais lidar com a complexidade da informação

Facilitando o aprendizado

Dado que os recursos da memória de trabalho são limitados e dado que temos esses dois tipos de carga consumindo esses recursos, o que poderíamos fazer para facilitar o processo de aprendizado para alguém?

Talvez a primeira coisa que venha a mente seja tentar reduzir ao máximo cada um desses tipos de carga. Pensando apenas na carga intrínseca, que tipo de ação seria viável pra minimizá-la?

A primeira variável que podemos manipular é o conhecimento prévio mas para alterá-lo a pessoa precisa aprender. Pode parecer estranho mas isso deixa claro como é importante que as pessoas tenham os pré-requisitos antes de estudar um determinado assunto. De certa forma, quanto mais aprendemos mais fácil fica aprender. Por outro lado, essa é uma variável mais difícil de controlar numa sala de aula, por exemplo. As pessoas que estarão nessa sala serão muito diferentes e é muito improvável que todas elas tenham a mesma base de conhecimento prévio. Em alguns casos podemos até exigir algum nivelamento mas isso apenas esconde o problema pois funciona como um filtro.

Vamos então pensar na segunda variável que a interatividade entre os elementos. Esse é apenas um nome mais bonito para indicar o quão interrelacionados entre si estão os elementos de algo que queremos estudar. Acredito que já dá pra perceber que não dá pra simplesmente eliminar essas relações entre os elementos pra diminuir a complexidade do assunto. Apesar disso, podemos quebrar esse conteúdo em partes menores e sequenciá-las para que essas relações fiquem mais claras e também para que não seja necessário mostrar toda a informação de uma só vez. Conforme a pessoa vai aprendendo cada parte, seu próprio conhecimento prévio vai aumentando e ela vai ficando mais capaz de lidar com a complexidade do tópico.

E com relação à carga extrínseca, o que podemos fazer? Essa é um pouco mais fácil e a primeira coisa a fazer é reduzir ao máximo qualquer tipo de distração ou informação desnecessária. Aqui entram aquelas recomendações de estudar em algum lugar tranquilo, sem barulho e onde você saiba que não vai ser interrompido a todo momento. Para quem escreve materiais didáticos, é importante que as informações estejam todas reunidas em um mesmo lugar. Você já deve ter visto aqueles livros onde a todo momento existe uma referência para alguma figura que não está na página que você está lendo nesse momento. Só o fato de ter que parar, procurar a página, visualizar a figura e voltar para onde você estava já vai contar como carga irrelevante.

Ao eliminar as distrações, reduzimos a carga extrínseca imposta e quem estava com dificuldades agora consegue lidar com a carga intrínseca sem exceder a capacidade da memória de trabalho

Dificultando o aprendizado

Falando ainda sobre o material didático, além de organizar melhor a forma como as instruções são apresentadas, existe uma outra maneira de ajudar no aprendizado. No post sobre estratégias de aprendizado, comentei que aprender é um processo que exige esforço e que é naturalmente difícil desde que as dificuldades enfrentadas sejam relevantes para o aprendizado e não apenas distrações. Existe um artigo escrito por Elizabeth L. Bjork e Robert Bjork que fala bastante sobre isso e que vou deixar nas referências abaixo.

Por exemplo, ao apresentarmos exercícios com contextos bastante diferentes daqueles utilizados durante o aprendizado, a pessoa vai precisar se esforçar um pouco mais para saber como aplicar o que foi aprendido nesses novos cenários. Cada novo exercício é um desafio e vai permitir que a pessoa crie esquemas de maior qualidade para lidar com aquele tipo de problema. Nesse caso, estamos dificultando o processo de aprendizado mas isso vai resultar em um aprendizado mais profundo.

Outro exemplo é fazer uso do que é conhecido como efeito de geração que consiste em fazer com que as pessoas elaborem perguntas sobre um assunto que estão aprendendo e exigindo que elas pratiquem a recuperação do que já sabem. Esse é um processo que também já vimos que exige bastante esforço mas que resulta em um aprendizado de longo prazo.

Em ambos os casos, estamos transformando algo que poderia ser uma distração (material didático de baixa qualidade ou formato de instrução que não exige esforço) em algo benéfico para o aprendizado. Na teoria da carga cognitiva, esse redirecionamento dos esforços que usaríamos para lidar com a carga irrelevante para a carga intrínseca é chamada de carga relevante. De forma simplificada, podemos dizer que ela é determinada pelos recursos que usamos no processo de aprendizado em si.

Ajustando o material didático e o formato de instrução, podemos reduzir ainda mais a carga extrínseca e converter parte dela em carga relevante que é benéfica para o aprendizado

Aplicando a teoria no dia a dia

Embora tenha falado sobre a teoria da carga cognitiva com um viés de aprendizado, podemos aplicá-la para qualquer tarefa que realizamos. Como um exemplo, imagine que você precisa aprender a dirigir um carro. Qual seria a carga intrínseca dessa tarefa se você nunca tivesse dirigido um carro antes? Provavelmente ela vai ser altíssima pois tem muita coisa acontecendo e que são informações novas para você. Até mesmo a pessoa que está te instruindo pode entrar como carga irrelevante se ela estiver falando enquanto você tenta arrancar com o carro, por exemplo. Um outro exemplo de carga irrelevante seria o fato de você estar a todo momento pensando que vai bater o carro da auto escola. Perceba que isso não é relevante para o seu aprendizado naquele momento mas ainda assim isso está na sua memória de trabalho consumindo recursos valiosos.

Um outro exemplo agora na culinária. Você já deve ouvido falar do termo “mise en place” se você já assistiu algum daqueles reality shows de culinária. O termo se refere ao ato de separar todos os utensílios e ingredientes que serão necessárias para preparar algum prato. O objetivo dessa prática é minimizar a possibilidade de erros durante o preparo e permitir que a reação seja mais rápida no caso de algum imprevisto. Esse é um exemplo perfeito de gerenciamento da carga intrínseca. Por mais complexa que seja uma receita, você consegue quebrá-la em etapas e sequenciá-la, minimizando assim a complexidade da tarefa. Ter tudo o que você precisa em mãos também tira a preocupação de ter que encontrar alguma coisa às pressas enquanto algo está no fogo, por exemplo.

Poderíamos continuar falando aqui sobre uma infinidade de tarefas como a escrita de um código, o trabalho realizado por um controlador de voo, o design de uma interface de usuário e assim por diante. Em todas elas, temos mecanismos e orientações para trabalhar com a carga cognitiva e evitar que a tarefa se torne muito complexa a ponto de causar erros. Isso é completamente natural pois independente da tarefa que realizamos, precisamos utilizar a memória de trabalho para processar e manipular informações. Logo, a teoria da carga cognitiva está presente em toda tarefa que realizamos e saber como ela funciona vai te ajudar a tomar decisões mais informadas de modo a gerenciar a carga cognitiva e tornar essas tarefas mais simples.

Referências

  1. Sweller, J., van Merriënboer, J.J.G. & Paas, F. (2019). Cognitive Architecture and Instructional Design: 20 Years Later. Educ Psychol Rev 31, 261–292. – teoria da carga cognitiva
  2. Miller, G.A. (1956). The magical number seven plus or minus two: some limits on our capacity for processing information. Psychological review, 63 2, 81-97. – sobre o limite de capacidade da memória de trabalho
  3. Bjork, Elizabeth & Bjork, Robert. (2011). Making things hard on yourself, but in a good way: Creating desirable difficulties to enhance learning. Psychology and the Real World: Essays Illustrating Fundamental Contributions to Society. 56-64. – sobre a introdução de dificuldades desejáveis para o aprendizado

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