Aulas online não deveriam ser novidade

Do dia pra noite, todos nós que trabalhamos com educação em formato presencial nos vimos com o desafio de migrar as nossas aulas para o formato online. Não tenho dúvidas que esta é uma mudança que parece assustadora no começo e que traz consigo uma série de desafios mas também é uma grande oportunidade para usarmos tudo o que sabemos sobre aprendizado para entregar a melhor experiência de aprendizado possível para quem precisa delas.

Pescando aqui na memória, me lembrei que o meu pai aprendeu a ser técnico em eletrônica fazendo ensino a distância no antigo Instituto Universal Brasileiro. Os materiais chegavam pelo correio, ele estudava no horário que era possível e enviava de volta os exercícios de cada aula para correção. Apesar de parecer uma situação bastante precária, esse formato foi suficiente para que ele aprendesse e fosse bem sucedido na profissão.

Se esse formato com todos os seus problemas foi suficiente nesse cenário, por que o cenário das aulas online não funcionaria ou por que ele parece alguma novidade? Temos uma grande quantidade de recursos e ferramentas pra ajudar com essa tarefa mas não podemos nos esquecer do principal: as pessoas são todas muito parecidas na forma como aprendem. Entregar uma boa aula seja por carta, online ou presencialmente vai depender do nosso próprio entendimento sobre o que rege o nosso próprio aprendizado e como podemos enxergar cada um desses formatos como o que eles realmente são: possíveis canais para se transmitir conhecimento.

Estimule a curiosidade

A primeira coisa que devemos pensar é em como capturar a atenção das pessoas que vão assistir as nossas aulas. Tudo vai depender do quão rápido conseguimos demonstrar o valor daquilo que queremos ensinar. Desse modo, quem estiver assistindo consegue perceber que aquilo pode ser útil em algum momento e vai dedicar um esforço maior para absorver aquele conteúdo.

Podemos fazer isso iniciando a aula com um exemplo prático do dia a dia e que seja de conhecimento geral envolvendo o tema que queremos apresentar. A ideia aqui é que o que vamos ensinar vai facilitar a solução de alguma tarefa comum. Se feito corretamente, esse passo vai prender a atenção da turma e nos fornecer um período de atenção precioso onde vamos poder trabalhar a explicação daquele tema.

Um exemplo de como podemos fazer isso poderia ser:

“Vamos imaginar que fomos contratados para planejar uma loteria. Nessa loteria, cada bilhete vem com uma sequência de figuras de animais, algo como: leão, elefante, rato, elefante. Queremos disponibilizar 1 bilhão de bilhetes distintos mas não sabemos qual deve ser o tamanho da sequência de animais. Sabendo que existem apenas 6 tipos de animais disponíveis, como a gente faz pra descobrir qual seria o comprimento ideal da sequência em cada bilhete?”

Conseguiu descobrir qual é o assunto dessa aula? Esse é um ponto importante também: estimular a curiosidade. Provavelmente várias ideias surgirão para tentar resolver esse problema que parece ser bem simples. Para esse caso específico, daria pra ir testando quantas vezes devemos multiplicar 6 por ele mesmo para termos mais de 1 bilhão de possibilidades bilhetes. Mas e se esses números fossem tão grandes que você não conseguisse mais testar um por um? Daqui pra frente, dá pra conectar com o que falamos no post anterior sobre como aproveitar o conhecimento prévio da turma e fica fácil conduzir a aula até chegar no conceito que queríamos explicar que era o logaritmo. (espero que você tenha acertado!)

Controle a quantidade de informações

Quando estamos em uma sala de aula, estamos em um ambiente controlado e fica mais difícil se distrair com tudo que não está relacionado à aula. Claro que sempre existe o celular, as conversas paralelas e as preocupações do cotidiano mas o cenário é bastante diferente quando estamos estudando em nossas próprias casas.

Nesse novo cenário, qualquer coisa se torna uma potencial distração no momento em que você está estudando. A sua cama está sempre ao seu alcance, você pode se levantar rapidamente pra pegar algo pra comer ou então você pode se distrair com alguém ouvindo música ou jogando videogame em um outro cômodo e assim por diante. Todas essas distrações vão inevitavelmente consumir parte dos recursos da sua memória de trabalho. No post sobre a memória, vimos como esses recursos são limitados e como eles são importantes para o aprendizado então precisamos fazer o possível para exigir o mínimo deles durante as nossas aulas.

Não é difícil fazer isso, mesmo em um cenário online. Basta controlar o impulso de querer mostrar de uma vez todas as possibilidades sobre um tema. Isso também sugere que os vídeos ou explicações não devem ser muito longos pois desse modo podemos limitar a quantidade de informação que pode ser transmitida de cada vez.

Nesse tempo limitado, podemos começar com o exemplo mais simples e com o caminho mais feliz que pudermos para demonstrar o conceito de forma superficial. Depois de validar e ter certeza que a turma já conseguiu absorver aquela parte, podemos adicionar camadas de complexidade sempre em cima do que já foi aprendido. Com isso estamos formando um esquema inicial o mais rápido possível e depois tentamos enriquecê-lo pois já vimos que os esquemas já consolidados não consomem recursos significativos da memória de trabalho.

Dê feedback constantemente

Esse ponto é um pouco mais difícil de executar se estivermos seguindo um modelo assíncrono onde as aulas são gravadas e disponibilizadas para serem visualizadas sob demanda. Ainda assim, dar feedback sobre como cada pessoa está absorvendo o material é essencial. Essa é a melhor forma de reforçarmos o que foi aprendido corretamente e corrigirmos os equívocos de entendimento.

Numa aula ao vivo, fica fácil interagir com a turma e checar o entendimento a qualquer momento. A interação entre as pessoas da mesma turma também ajuda a difundir e nivelar o conhecimento entre essas pessoas e evita que se tenha apenas o ponto de vista de quem ensina. Muitas vezes já nos aprofundamos tanto em determinado assunto que esquecemos como pensávamos quando ainda éramos iniciantes. As pessoas da sua turma vão estar exatamente nessa situação e vão conseguir se entender e falar uma mesma língua muito melhor do que poderíamos.

Em ambos os casos, a solução padrão para a verificação de entendimento são os exercícios. No entanto, costumamos nos esquecer que os exercícios devem ser uma ferramenta de aprendizado e não de avaliação. Idealmente, as pessoas devem conseguir aprender e consolidar os seus conhecimentos nesse processo.

Para alcançar esse objetivo, podemos começar apresentando um modelo de como resolver cada sequência de exercícios. Primeiro mostramos como se faz e depois aplicamos uma série de exercícios para a pessoa se testar. Ainda podemos fazer mais para gerenciar também os recursos da memória de trabalho e chamar atenção para cada passo do modelo de referência. Podemos utilizar exercícios de completar onde uma parte dos passos do exercício já vem pronta e a pessoa precisa apenas completar 1 ou mais passos finais. Podemos diminuir gradualmente esse suporte para que a pessoa possa treinar cada um dos passos do exercício depois de ter dominado os anteriores. Tudo isso vai ajudar no aprendizado e também nesses casos onde o acompanhamento dos exercícios não acontece ao vivo.

No momento da correção, é importante tentar entender quais foram as dificuldades que cada pessoa teve nos exercícios. No entanto, elaborar exercícios que consigam deixar isso explícito é algo bastante complexo e que exige bastante esforço. Como isso é algo benéfico e que deve ser trabalhado, sempre que elaborar um exercício, pense em que tipo de informação ele está trazendo sobre a pessoa que responde. Você vai conseguir detectar se a pessoa respondeu a pergunta corretamente pelas razões certas? Ou ela conseguiria chegar no resultado correto de forma equivocada?

Outro ponto importante na correção é o que vamos entregar de volta. Se o objetivo é fazer as pessoas aprenderem, uma nota não vai ajudar muito. Precisamos devolver comentários ou até mesmo perguntas que façam a pessoa perceber aquilo que ela ainda não percebeu. Novamente, o feedback também é uma oportunidade de aprendizado e devemos aproveitar mais esse momento pra potencializar isso.

Pratique a recuperação

Já vimos também que uma das estratégias de aprendizado mais eficazes é a prática de recuperação. Por esse motivo, é essencial que essa estratégia seja ensinada e aplicada em todas as nossas aulas. Isso é válido tanto para as aulas ao vivo quanto para as gravadas. O custo de se fazer isso é mínimo e estaremos facilitando ainda mais o aprendizado.

Podemos aplicar essa estratégia durante as aulas e nos exercícios na forma de perguntas que exijam o uso de algo que já foi aprendido em alguma das aulas anteriores. Se estamos produzindo aulas em vídeo, podemos fazer perguntas e pedir para que a pessoa pause o vídeo e tente anotar a resposta antes de prosseguir. O importante é que ela tente buscar essa informação da memória de longo prazo e que a reconstrução dessa memória aumente a sua retenção. Nos exercícios, podemos sempre incluir exercícios relacionados a aulas anteriores aplicando simultaneamente aqui a prática de recuperação e também o espaçamento.

Para as aulas ao vivo, fica mais natural fazer o uso das perguntas mas também fica mais fácil de apenas algumas pessoas dominarem as discussões. Precisamos que todos pensem na resposta antes de alguém responder. Uma forma simples de fazer isso é pedir para todos escreverem a resposta para a dúvida e deixar claro que você vai escolher alguém para responder. Como ninguém sabe quem vai ser chamado, todos farão algum esforço para responder. Se mesmo assim a pessoa escolhida não souber a resposta, você pode ouvir outras pessoas e depois voltar na que não sabia para pedir para ela opinar sobre as outras respostas ou simplesmente resumí-las. Pode parecer um processo que pode deixar as pessoas com um certo desconforto mas é algo que vai favorecer o aprendizado. Desde que você deixe claro o porquê disso, a tendência é que todos aceitem e se ajustem.

Aprenda e se adapte

Embora as aulas online tenham chegado com força nesse momento atípico, note que todas as recomendações que vimos nesse post poderiam ser aplicadas em qualquer formato de aula. Isso só é possível pois elas se baseiam no conhecimento acumulado das últimas décadas sobre o aprendizado humano. De posse desse conhecimento, espero que você consiga tomar decisões cada vez mais informadas sobre como facilitar o aprendizado sempre levando em conta nossas limitações e também o contexto no qual as aulas acontecem.

Já praticando o que comentei no texto, encerro o texto com um exercício para você se desafiar e aprender um pouco mais:

  • O que você conseguiria mudar hoje na sua aula levando em conta o que vimos nesse texto?
  • Quais outros canais você poderia utilizar para ensinar alguma coisa e quais seriam os desafios nesses canais? Por exemplo, como seria ensinar pelo Twitter? Ou pelo Instagram?

Um pensamento em “Aulas online não deveriam ser novidade

  1. “Dê feedback constantemente” esse é um ponto fundamental para mim enquanto aluno, para saber se estou avançando para o caminho certo.

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