Para ensinar, primeiro você precisa ouvir

Vou te ensinar a chegar no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo com algumas instruções bem simples. Primeiro, você vai pegar a Rua Domingo de Morais no sentido sul, depois vai pegar a Sena Madureira mantendo-se à esquerda, entrar na Pedro Álvares Cabral e depois se manter à direita até chegar no destino. Fácil, não?

Eu sinceramente espero você nunca receba direções como no meu exemplo acima. O quão úteis elas são se você não mora em São Paulo e não conhece as ruas citadas? Será que essas instruções servem pra quem está a pé? Qual é o ponto de partida para usarmos as direções? Acho que já deu pra perceber que provavelmente não consegui atingir o meu objetivo de te ensinar a chegar no museu.

Apesar de eu ter falhado na primeira missão, espero que eu tenha mais sucesso na missão desse post que é te mostrar que a maioria das aulas que assistimos em nossas vidas acabam sofrendo dos mesmos problemas que acabamos de ver. Independente se você ensina ou se você quer aprender, vamos ver o que podemos fazer de diferente para alcançar um resultado melhor.

Não se prenda a um roteiro

Diferente dos demais textos do blog, esse post se baseia em parte nas experiências que tive depois de começar a dar aulas na Caelum e também em tudo que venho estudando sobre ensino e aprendizagem.

Há algum tempo atrás, escrevi o primeiro post desse blog onde comentei que para aprendermos qualquer coisa, precisamos combinar aquilo que já conhecemos com o que estamos tentando aprender. Quando não temos ideia de como combinar essas informações, acabamos caindo em estratégias genéricas de solução de problemas como a busca por tentativa e erro. Como nosso conhecimento prévio é bastante extenso, já vimos que isso vai ser bastante ineficiente e provavelmente vai dificultar bastante o aprendizado.

Esse acaba sendo o cenário para a grande parte das aulas que acabamos assistindo na escola, na faculdade ou em alguns cursos por aí. Isso acontece principalmente quando a pessoa que vai ensinar já chega com um roteiro pronto de tudo o que ela precisa falar desde o início da aula até o seu fim. Ao usar um roteiro como esse, ela está desconsiderando boa parte do conhecimento prévio que cada pessoa traz pra sala de aula.

Embora essa abordagem pareça ser ruim, muitos de nós conseguiriam aprender com ela e isso acontece pois fazemos um esforço adicional para tentar de alguma forma conectar o que está no roteiro com algo que faça sentido na nossa cabeça. No entanto, a quantidade de esforço necessária vai variar de pessoa para pessoa e se a distância a ser percorrida pra fazer essa conexão for muito grande, aí com certeza a pessoa vai ter grandes dificuldades pra aprender.

Por esse motivo, precisamos de alguma outra estratégia para facilitar a vida de quem quer aprender.

Liste o que você precisa ensinar

Já que não podemos vir pra aula com um roteiro, qual seria a melhor alternativa? Pense que você viajou para algum país e que você quer visitar vários pontos turísticos. Ao invés de se preparar para visitar cada ponto em uma ordem pré-definida, você poderia simplesmente preparar apenas uma lista com todos os pontos a serem visitados. Desse modo, se acontecesse algum imprevisto e você precisasse começar o seu tour de algum outro lugar, você poderia se adaptar e usar a lista como referência para saber quais pontos faria mais sentido visitar naquele novo contexto.

Você pode fazer o mesmo com uma aula pensando apenas nos tópicos que pretende apresentar mas sem se preocupar com a ordem ou com o caminho que você vai seguir para ir de um ponto a outro. A ideia aqui também é se adaptar de acordo com o contexto que nesse caso é determinado pelo conhecimento prévio demonstrado pela sua turma. A pergunta que fica é como fazemos para descobrir o que a turma já sabe?

A melhor forma de saber é perguntar! Quando perguntamos como resolver algum problema, ou o que aconteceria em um determinado cenário hipotético, estamos descobrindo como cada pessoa está pensando naquele momento e aí o nosso papel é guiar aquela pessoa a partir daquele ponto até onde queremos chegar.

Descubra o ponto de partida

Parece que fazer perguntas é algo que nos ajuda a ensinar então vale a pena dedicar uma parte do nosso tempo falando sobre como fazer boas perguntas. A sugestão que eu dou é sempre pensar que toda vez que você fizer uma pergunta, você deve saber o que você vai poder aprender sobre cada pessoa e também o que cada pessoa vai aprender ao responder aquela pergunta.

Idealmente, a resposta da sua pergunta tem que deixar clara qual a linha de raciocínio que a pessoa está utilizando. Por isso, nada de perguntas que a pessoa possa chutar facilmente pois o objetivo aqui é que ela formule uma resposta completa, que demonstre como ela está pensando. Assim, ao ouvir a resposta você pode ajustar a sua explicação de acordo com o ponto onde a pessoa se encontra.

Pra não ficar apenas na teoria, vamos tentar ver isso na prática com um exemplo onde o objetivo é explicar o que é uma mutação e qual o seu papel na evolução.

Pergunte e ouça atentamente

Imagine que temos uma população de seres vivos cujas características são determinadas unicamente por um código genético representado por uma sequência de 6 letras como ABCDBC. Nesse cenário específico, vamos supor que esses seres vivos se reproduzam por clonagem então o que podemos dizer sobre o código genético e sobre as características de qualquer indivíduo dessa população?

Nesse momento, a pergunta vai ajudar a descobrir quem sabe o que significa clonagem e também se todos entenderam que todos indivíduos vão ter exatamente as mesmas características e portanto vão ser idênticos. Perceba que as pessoas podem não ter notado isso ainda mas é importante que elas entendam isso para a próxima parte da explicação. A partir daí, se algum dos pontos não estiver claro, você pode explorar qualquer um deles com mais perguntas. Vamos em frente:

Agora que entendemos como é essa população, suponha que se o código genético de um indivíduo começa com ABC, ele tem características que o ajuda a viver em climas quentes mas não em climas mais frios. O que aconteceria com a nossa população se algum evento catastrófico provocasse uma diminuição significativa da temperatura do ambiente?

Nesse ponto estamos tentando verificar se está claro que a população está muito susceptível a mudanças no ambiente e que isso pode causar a extinção dela. Novamente, se isso não está claro, podemos fazer perguntas mais direcionadas como:

“Olhando para o código genético da nossa população, em que tipo de clima ela conseguiria sobreviver?”

Ou então:

“Quantos indivíduos dessa população conseguiriam sobreviver a essa mudança climática?”

Perceba que dá pra ir montando um modelo do que cada pessoa está pensando com base na resposta dessas perguntas e isso vai guiando cada próximo passo da explicação.

Dado que a nossa população tem pouca chance de sobreviver, que tipo de mecanismo precisaria existir para que essa população sobrevivesse a esse tipo de mudança?

Essa é uma pergunta mais difícil e pode ter muitas respostas diferentes mas essa é uma das mas melhores razões para se ensinar dessa forma. Alguém poderia responder:

“Já sei! Os indivíduos poderiam mudar o seu código genético!”

Essa seria uma resposta bem interessante pois mostra que ainda não está claro na explicação que o código genético a princípio não pode ser alterado espontaneamente então esse seria um bom momento pra esclarecer isso.

Uma outra resposta possível poderia ser:

“Ah então a gente não poderia copiar o código sempre igual, seria melhor que fosse aleatório.”

Também é uma resposta muito boa e poderia ser respondida com:

Mas se a gente mudar muito o código genético de um indivíduo, como vão ser as características dele com relação ao indivíduo original?

Essa pergunta vai servir pra que a pessoa entenda que se o código mudar demais, pode ser que ele perca todas as características que fizeram os indivíduos daquela população sobreviver naquele ambiente. Uma continuação natural poderia ser:

Qual poderia ser então um meio termo entre mudar nada e mudar muita coisa?

Se a condução for feita corretamente, provavelmente vamos conseguir fazer com que a pessoa perceba um dos pontos chave da explicação:

“Talvez então a gente pudesse mudar só uma das letras do código?

Pronto! Aqui poderíamos falar que parece ser uma ótima solução e que de fato a gente tem algo bem parecido na natureza na forma de mutações que afetam uma pequena parte do nosso DNA.

Daqui pra frente, daria pra falar sobre a importância de gerar novos indivíduos a partir de dois outros indíviduos com a reprodução sexuada e que combina partes dos códigos genéticos desses indivíduos como forma de aumentar a variabilidade dos indivíduos. Com isso, a chance de que esses indivíduos sobrevivam a doenças e outros eventos como uma mudança climática também é maior.

Prepare-se para improvisar

No exemplo acima, vimos um dos possíveis caminhos para ensinar sobre um tópico específico. Pelo fato de não termos um roteiro, toda vez que formos ministrar essa aula, provavelmente vamos ter respostas bem diferentes e que vão levar a aula em outras direções. Por esse motivo, é bem importante que você domine o assunto o suficiente para que você consiga improvisar boas perguntas durante a explicação.

Sugiro sempre entender a fundo o que você quer explicar e isolar o conceito de tudo que for irrelevante e que estiver ao seu redor. No post onde falo sobre os papéis da nossa memória, expliquei rapidamente do limite sobre a quantidade de informações que a nossa memória de trabalho consegue manipular simultaneamente e por esse motivo é importante usar o mínimo de elementos possível em cada parte da explicação. Perceba que simplifiquei bastante a questão do código genético pois o conceito que eu queria explicar não precisava que a pessoa soubesse exatamente o que é o DNA e como ele funciona.

Uma outra dica que ajuda é usar o cenário a seu favor. Ele não precisa ser um cenário que replique exatamente o conceito que você quer explicar. Assim fica fácil gerar novas situações quando necessário e esse foi o caso quando mudei bruscamente o cenário com um evento catastrófico qualquer justamente porque queria evidenciar o perigo de se ter uma população de clones.

Participe das aulas

Até agora falamos do ponto de vista de quem ensina mas o que podemos fazer se estivermos do lado de quem aprende? A resposta é bem simples: responda as perguntas que surgirem durante a aula ou então faça você mesmo algumas perguntas durante a aula!

Se a pessoa que estiver ensinando souber o que está fazendo, ela vai aprender muito sobre você quando você perguntar ou responder e vai poder usar isso como feedback para ajustar as explicações. Sei que naturalmente temos aquele receio de sermos julgados por dar uma resposta incorreta mas lembre-se que o objetivo aqui não é estar certo ou errado mas sim demonstrar como você está pensando. Tenho certeza que muitas outras pessoas vão estar na mesma posição que você e vão se beneficiar de um pequeno ajuste nas explicações.

E se você estiver no papel de quem ensina, experimente ouvir o que as pessoas estão pensando. Posso garantir que você vai aprender bastante e elas também.

3 pensou em “Para ensinar, primeiro você precisa ouvir

  1. Para aplicar essa abordagem em sala de aula, minha maior dúvida seria como descobrir o ponto de partida quando se trata de uma turma heterogênea, principalmente em casos de turmas numerosas.

    1. Oi Juliana, essa é uma ótima pergunta!

      Uma possível abordagem seria perguntar, ouvir e repassar as dúvidas para a própria turma, estimulando e moderando a discussão. Desse modo, alguém que está mais na frente no entendimento consegue ajudar quem está mais atrás. Nesse caso, vai ser ainda mais importante ouvir cada lado da discussão para saber que perguntas fazer para direcionar e nivelar o entendimento da turma.

      Uma outra abordagem viável é diminuir a quantidade de perguntas e coletar as respostas de todas as pessoa da turma usando algum sistema, por exemplo. Com isso você pode apresentar o resultado geral das respostas e discutir o resultado com todo mundo até nivelar novamente o conhecimento.

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