Sua memória é mais do que um repositório de informações

Quase todos os dias pela manhã, faço o mesmo ritual de preparo do café que me ajuda a iniciar o dia. É uma sequência de uns 7 ou 8 passos e enquanto os executo, faço uma revisão mental das tarefas do dia, problemas a resolver, contas pra pagar, jogos pra jogar e várias outras coisas. Em alguns dias, tudo acontece tão automaticamente que fico me questionando se não pulei algum passo.

É um cenário bastante diferente de quando tentei preparar sozinho o meu primeiro café. Estava munido apenas de uma série de instruções fornecidas pela minha mãe e a esperança de conseguir um café tão bom quanto o dela. Durante toda a execução, não conseguia pensar em outra coisa, estava focado em seguir à risca cada um dos passos que tinha memorizado. Depois de alguns momentos de tensão, lá estava eu com uma bela xícara de café nas mãos. Certamente não foi o melhor café que já tomei mas hoje ele serve como um ótimo exemplo para o tema desse texto.

A diferença entre os dois cenários é que antes eu não sabia fazer café e hoje eu sei. Você mesmo já deve ter passado por algumas experiências parecidas onde o aprendizado transformou uma tarefa complexa em algo tão simples que é como se você não precisasse pensar para executá-la. Para entender como isso acontece, vamos precisar começar bem devagar conhecendo algumas das estruturas cognitivas que possibilitam o aprendizado.

Quando tudo é novidade

Suponha que, assim como eu lá no passado, você nunca tenha preparado café na sua vida e resolva aprender com um passo a passo que você encontrou na embalagem do café:

  1. Coloque a água para ferver.
  2. Adicione de 4 a 5 colheres de café no filtro já com o suporte e jarra.
  3. Retire a água do fogo. Aqui a dica é não colocar a água ainda em ebulição.
  4. Jogue a água sobre o pó com cuidado, sempre no centro do coador.

Você compra os ingredientes e ferramentas necessárias, vai pra casa e começa a executar os passos de acordo com as instruções. No meio do segundo passo, depois de ter colocado 3 das colheres de café, a campainha toca e você vai atender. Ao retornar, você olha para as instruções e para o filtro de café e lembra que estava no segundo passo mas aí surge uma dúvida: “Quantas colheres de café eu já coloquei?”. Antes da campainha, enquanto colocava o pó no filtro, você provavelmente estava mantendo uma contagem mental das colheres. Apesar de ter memorizado esse número, dependendo do tempo que se passou desde o toque da campainha até o retorno ao preparo, essa informação pode ter desaparecido. Nesse tipo de situação, estamos lidando com as limitações de uma das principais estruturas da arquitetura cognitiva humana que é a memória de trabalho.

A memória de trabalho é o local onde colocamos as informações que queremos processar e manipular. Ela é bastante limitada com relação à quantidade e ao tempo de retenção de informações. Geralmente temos a sensação de que algo é simples quando conseguimos lidar com suas informações sem sobrecarregar a capacidade dessa memória. O contrário também é verdade e sentimos que algo é muito complexo quando precisamos trabalhar com muitas informações ou então quando elas estão muito relacionadas entre si.

Acumulando conhecimento

No cenário acima, fazemos uso da memória de trabalho para entender cada um dos passos e também para executá-los com sucesso. Por exemplo, no passo “Adicione de 4 a 5 colheres de café no filtro já com o suporte e jarra”, se você nunca viu esse processo antes, você vai precisar da memória de trabalho para armazenar e trabalhar com cada um dos seguintes elementos: 4 a 5 colheres de café, filtro, suporte e jarra. Novamente, se isso é muito novo pra você, talvez você precise fazer um procedimento de tentativa e erro pra entender como esses elementos se encaixam. Mas se você já viu isso antes, mesmo que tenha sido há muito tempo atrás, é bem provável que você saiba que o suporte vai sobre a jarra e que o filtro deve ir dentro do suporte. Nesse caso, dado que já vimos que a memória de trabalho é incapaz de manter informações por longos períodos de tempo, onde estamos buscando essas informações? A resposta está em outra estrutura cognitiva fundamental para o aprendizado e para a nossa capacidade de resolução de problemas que é a memória de longo prazo.

Diferente da memória de trabalho, a memória de longo prazo permite armazenar uma quantidade praticamente ilimitada de informações por um longo período de tempo. Em compensação, dizemos que essa memória é inconsciente pois não conseguimos manipular o seu conteúdo diretamente sem que antes ele seja transferido para a memória de trabalho.

Memórias trabalhando juntas

Vamos fazer um teste: tente escrever todas as palavras que você conhece. Não tenho dúvidas que você vai conseguir escrever muitas palavras mas também tenho certeza que vai ser impossível dizer se você conseguiu lembrar todas que estão na sua memória de longo prazo. Agora faça um outro teste: escreva o nome de todos os meses de um ano. Acredito que essa vai ser bem mais fácil. A questão aqui é que quando temos uma pista, um critério ou até mesmo uma categoria, fica muito mais fácil buscar as informações relevantes na memória de longo prazo. Isso acontece pois essa memória armazena as informações de forma hierárquica e categorizada no que chamamos de esquemas. Pensando no exemplo dos meses, podemos imaginar que essa informação está armazenada na forma de um esquema composto de vários subesquemas como no exemplo abaixo:

  • mês
    • uma unidade de medida de tempo que divide um ano em 12 partes mais ou menos iguais
    • corresponde aproximadamente ao tempo que leva para que a Lua complete uma volta completa ao redor da Terra
    • janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro são os nomes de cada um dos meses
    • podem ter 30 ou 31 dias com exceção de fevereiro que pode ter 28 ou 29 dias caso o ano seja bissexto

Toda vez que você precisar trabalhar com a informação “mês”, os esquemas e subesquemas relacionados serão ativados e trazidos para a memória de trabalho. Mas aí você pode estar se perguntando: “Você não disse que a memória de trabalho tem capacidade limitada? Como a gente vai trazer toda essa informação de uma vez?“. Com tudo que vimos até agora, faz sentido pensar dessa forma mas se isso acontecesse na prática, provavelmente a espécie humana não teria tido muito sucesso na evolução. Seria como se a gente pudesse acumular conhecimento mas nunca conseguisse usá-lo de maneira integrada e aí não conseguiríamos lidar com problemas complexos. Como a história parece ter provado justamente o contrário, algo diferente precisa ocorrer nessa interação entre a memória de trabalho e de longo prazo. O que a ciência mostra é que uma vez que acionamos um esquema, temos acesso a toda informação contida nele e em todos os subesquemas relacionados sem custo significativo para a memória de trabalho.

Mais esquemas, por favor

Já que a capacidade da memória de longo prazo é praticamente ilimitada e os esquemas parecem ser algo bastante útil para que a gente consiga executar tarefas e resolver problemas complexos, parece natural querer acumular uma grande quantidade deles. Só resta a pergunta: como fazemos para construí-los?

A construção de um esquema acontece quando conseguimos trazer alguma informação nova para a memória de trabalho e conseguimos organizar, categorizar e relacionar essa informação com esquemas prévios da memória de longo prazo. Vamos ver isso em prática retornando para o exemplo do café. No caso onde nunca tínhamos feito café, utilizamos um passo a passo como um substituto para um esquema que não possuíamos. Conforme executamos os passos, construímos um esquema inicial baseado no que já conhecemos (por exemplo, suponha que você já viu a sua vó preparando café), nas instruções e também na experiência pessoal de ter realizado o processo. Da próxima vez que você for preparar um café, você vai conseguir ativar esse esquema para guiar o preparo e te ajudar a lidar com as informações daquela tarefa.

Outro ponto importante é que temos a capacidade de moldar esses esquemas conforme vamos obtendo mais informações. Você pode fazer alguns testes variando a proporção entre café e água, temperatura da água, tipo de filtro e assim por diante. Cada um desses testes vai te ajudar a enriquecer o seu esquema. Uma outra forma de enriquecê-los seria buscar mais informações sobre o assunto. Você pode descobrir que o ideal é manter a água em contato com o café por no máximo 3 minutos para evitar que as substâncias que trazem o gosto amargo sejam extraídas. Sabendo dessa informação, você pode fazer testes mais informados: se no último teste usei 200ml de água e o tempo de extração ficou em 4 minutos então na próxima vou diminuir tanto a quantidade de água quanto a quantidade de pó. Se você estiver usando o café em grãos, você pode fazer uma moagem mais grossa para que a água consiga fluir mais facilmente através do pó.

Perceba então que os esquemas não são imutáveis e possuem qualidades diferentes. Alguém que é especialista em determinado assunto vai possuir esquemas muito mais ricos e melhor organizados do que alguém que seja iniciante. Além disso, quando um esquema é utilizado recorrentemente, ele pode ser automatizado e a partir desse momento, o custo para ativá-lo na memória de trabalho se torna nulo. Lembra quando comentei lá no início do texto sobre como faço o café diário de forma automática sem que eu precise pensar nisso? Esse é um bom indicador de que o meu esquema para aquela tarefa específica foi automatizado. É como se a gente carregasse um aplicativo que reconfigura todas as nossas ações para realizar a tarefa. Se você dirige ou conhece alguém que dirige há muito tempo, vai perceber que as ações de controlar aceleração, direção, troca de marchas acontecem naturalmente sem que você ou a pessoa precise pensar sobre elas. Você pode estar conversando com alguém, cantando alguma música ou tentando lembrar o que você precisa comprar para preparar o jantar, tudo isso enquanto realiza as ações para controlar o carro. Uma vez carregado o esquema, o corpo parece se movimentar sozinho para realizar essas ações. O incrível aqui é que dirigir é um problema muito complexo. São muitas informações que precisam ser integradas e ações a serem realizadas para alcançar o objetivo final que é mover o carro de um local para outro.

Podemos ver então que a memória tem um papel muito mais importante do que imaginávamos. Usamos um modelo simplificado para descrever como ela se divide e também as suas várias funções desde o processamento até a organização do conhecimento na forma de esquemas. Apesar de simples, esse modelo permite que a gente tenha uma ideia melhor de qual deve ser o nosso objetivo ao tentarmos aprender ou ensinar alguma coisa: facilitar a construção de esquemas ricos para um determinado domínio. Se conseguimos atingir esse objetivo, podemos resolver problemas cada vez mais complexos sem sobrecarregar a nossa capacidade da memória de trabalho.

Próximos passos

O objetivo desse texto era facilitar a construção dos esquemas iniciais sobre as estruturas básicas envolvidas no aprendizado. Agora vamos conseguir falar mais detalhadamente sobre cada uma delas e como podemos derivar ações que vão tornar o ensino e o aprendizado mais efetivos e eficientes nos próximos posts.

Referências

  1. Baddeley, A. (1992). Working Memory. Science, 255, 556-559. – memória de trabalho
  2. Chase, W. G., & Simon, H. A. (1973). Perception in chess. Cognitive Psychology, 4, 55–81. – memória de longo prazo
  3. Bartlett, F.C. (1932). Remembering: A study in experimental and social psychology. Cambridge, England: Cambridge University Press. – teoria de esquemas
  4. Schneider, W., & Shiffrin, R.M. (1977). Controlled and Automatic Human Information Processing: 1. Detection, Search, and Attention. – automatização de esquemas
  5. Shiffrin, R.M., & Schneider, W. (1977). Controlled and automatic human information processing: II. Perceptual learning, automatic attending and a general theory. – automatização de esquemas

6 pensou em “Sua memória é mais do que um repositório de informações

  1. Geralmente busco associações pra gerar laços e ativar a memória com coisas novas que estou aprendendo. Essas associações são baseadas em coisas simples e concretas pra mim, como cores, números ou animais.

    1. Legal Victor! A ideia de associar com coisas que você já conhece ajuda muito e é ainda melhor se você conseguir relacionar com algo que realmente está ligado ao que você está aprendendo pois aí você complementa algum esquema previamente construído. Um ponto de atenção aqui é que o foco deve ser conseguir reconhecer padrões e ativar os esquemas relevantes sobre um determinado tópico então recursos que ajudam apenas a memorizar fatos não serão muito adequados. Exemplo: Podemos usar uma frase pra lembrar da primeira coluna da tabela periódica como “Hoje li na cama Robson Crusoé francês”, mas isso só ajuda a lembrar quais são os nomes dos elementos. Se você não entendeu como eles se relacionam e o que a posição de cada um na tabela periódica traz de informação, isso não vai te ajudar com problemas de química pois você não construiu um esquema de qualidade pra esse assunto.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para o topo